Quanto mais alto, mais perto do Sol
 



Contos

Quanto mais alto, mais perto do Sol

Micheline Ceres Tams


Fazia três semanas que o dia amanhecia cinzento. A neve, acumulada, bloqueava a porta da frente da casa. Entrávamos e saíamos pela janela da cozinha e sacada do segundo andar. No início era divertido, depois, perdia a graça. Logo cedo, papai, mamãe e meu irmão mais velho, Matias, foram até a cidade comprar mantimentos. Já passava das 18h e eles não haviam retornado.

A cabana mais próxima, de dona Francisca, ficava a mil metros montanha abaixo. No final do outono levaríamos uns 20 minutos para chegar, mas num dia como aquele, com gelo até o joelho, pelo menos uma hora. Mas isso de modo algum me preocupava, o que me tirava o sossego eram as escapulidas das minhas irmãs, Belén, de nove anos, e Isabel, de onze. O confinamento do rigoroso inverno das cordilheiras e as férias escolares as entediava e, sequer, levavam a sério as recomendações quanto aos perigos de suas aventuras.

Fui até o galpão buscar mais lenha e aproveitei para ver se avistava a luz da lanterna do Matias, mas nada. O vento gelado castigava meu rosto, o nariz escorria e os olhos lacrimejavam. Respirava com dificuldade e custava a me manter em pé. Pelo vidro, enxerguei vó Romina colocando mais água no ensopado. Dava para sentir o cheiro lá de fora. Ninguém tinha comido nada desde o almoço, quando a vovó dividiu o último pedaço de bolo em quatro e serviu como sobremesa. Estávamos impacientes ao redor das panelas. Não tardou para servir o jantar e, enquanto limpávamos a bagunça, contava histórias da época de criança.

Acomodei minhas irmãs na cama e tive sorte delas dormirem sem demora. O chalé de madeira era pequeno. Embaixo, a cozinha e a sala dividiam o mesmo espaço, ao lado do banheiro. No andar superior: o quarto dos meus pais, o nosso e o do Matias. O segundo andar sempre foi o lugar mais quente da casa, onde mais gostávamos de ficar.

Na manhã seguinte senti falta do cheiro do pão assado da mamãe. Continuei um pouco mais entre as cobertas. Isabel e Belén já tinham levantado. Chamei-as de volta para cama, muito cedo para estarem acordadas, fiquei sem resposta. A casa permanecia silenciosa, vovó roncava baixinho, andei na ponta dos pés para não fazer barulho. O vidro embaçado impedia de olhar o dia amanhecer. Calcei as botas, vesti um casaco grosso de lã e o de neve por cima. O termômetro marcava 8°C negativos. Peguei manta, gorro, luvas e saí.

O céu azul contrastava com o branco da paisagem e o sol - demorou a aparecer - derretia as amarras e despertava a vontade de brincar. Tive pouco tempo para admirar. As pegadas apontavam para o topo da montanha. Subi pelo caminho da encosta, o mais íngreme, segurava nas pedras e galhos das árvores. Gastava o nome delas de tanto chamar. Ao longe, escutei uma voz fraca. Corri quanto pude. A cada passo, afundava e ficava mais difícil prosseguir. Quase sem fôlego, avistei as duas.

- O que aconteceu? – Esbravejei.

Isabel segurava Belén em seus braços.

- Pensamos que seria mais quente aqui em cima, quanto mais alto, mais perto do sol. Colocamos pouca roupa e Belén desmaiou. É tudo culpa minha – começou a chorar.

Abracei as duas. Sim, estávamos mais perto do sol, mas o frio a 1900 metros é mais intenso, coisas da natureza. Lembrei quando tive essa conversa com papai. Custei a entender na época. Ao me aproximar de Isabel percebi seus cabelos e cílios cobertos de gelo, lábios

arroxeados, mãos geladas, as pernas endurecidas ajoelhadas na neve. Belén tremia. Sobrepus meu casaco formando uma oca para nos aquecer. Sem forças para carregá-las, fechei os olhos e rezei para alguém nos encontrar.

Não sei quanto tempo adormecemos encolhidas lá em cima.

Acordei com a voz do papai. Estavam todos lá, mamãe, vovó, minhas irmãs, menos Matias. Os invernos nunca mais foram iguais depois daquele dia.

***

Micheline Ceres Tams é jornalista formada pela Unisc. Atua como Gerente Administrativa, desde 2003, da Clínica Imagem, em Estrela/RS. Participou da coletânea de Minicontos de Amor e Morte organizado por Marcelo Spalding, em 2018. É aluna do curso de Formação de Escritores da Metamorfose.

Revisão e leitura crítica de Mitcheia Guma.

 

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